quinta-feira, 10 de julho de 2014

Anselmo Borges: Família em crise, desejo de família. 1

Texto de Anselmo Borges no DN de sábado passado:

Quem porá em dúvida o valor essencial da família como lugar predilecto dos afectos, do amor, da partilha, célula fundamental da sociedade, espaço privilegiado para ter filhos e educá-los?

Sobre tema tão fundamental o Papa Francisco quis saber, em tempos de crise, o que verdadeiramente se passa. E saber directamente, não por intermediários, pois estes vão frequentemente ao Vaticano dizer apenas o que julgam que o Papa e a Cúria querem ouvir.

A síntese das respostas dadas, por diversos meios, pelos católicos do mundo inteiro ao famoso inquérito papal sobre a família, com 39 perguntas, foi publicada na semana passada pelo Vaticano. Esse documento de mais de 80 páginas servirá de base para o debate do próximo Sínodo dos bispos de todo o mundo sobre a família, a realizar em Roma de 5 a 19 de Outubro próximo.

Um dos pontos mais sublinhados pelo documento refere-se precisamente à importância da família. Ela é "núcleo vital da sociedade e da comunidade eclesial", a "célula fundamental da sociedade, o lugar onde se aprende a conviver na diferença e a pertencer a outros". "A família é reconhecida no povo de Deus como um bem inestimável, o ambiente natural de crescimento da vida, uma escola de humanidade, de amor, de esperança para a sociedade"; "reconhecida como o lugar natural para o desenvolvimento da pessoa, é também o fundamento de toda a sociedade e Estado"; ela é definida como a "primeira sociedade humana", "o lugar no qual se transmitem e se podem aprender desde os primeiros anos de vida valores como a fraternidade, a lealdade, o amor pela verdade e o trabalho, o respeito e a solidariedade entre as gerações bem como a arte da comunicação e da alegria. É o espaço privilegiado para viver e promover a dignidade e os direitos do homem e da mulher. A família, baseada no matrimónio, representa o âmbito de formação integral dos futuros cidadãos de um país". "A primeira experiência de amor e de relação tem lugar na família: sublinha-se a necessidade de que cada criança conte com o amor e o cuidado protector dos pais e viva uma casa onde habita a paz."

O documento é notável. Conseguiu em pouco tempo fazer uma síntese clara e integrada - reconheça-se que era uma tarefa dificílima - das respostas recolhidas pelas conferências episcopais de todo o mundo ou enviadas directamente por outros organismos. E há razões sérias para considerá-lo fidedigno, pois até reconhece inequivocamente as dificuldades e mesmo alguma "resistência" de boa parte dos católicos quanto à aceitação integral dos ensinamentos da Igreja sobre múltiplos temas: controlo da natalidade, o divórcio e novo casamento, as relações pré-matrimoniais, a fidelidade, as uniões de facto, o casamento à experiência, a homossexualidade, a fecundação in vitro, etc.

Embora se dirija directamente aos católicos e no quadro do pensar católico, o documento é mais abrangente, mesmo quando apresenta razões da crise da família e, mais concretamente, da moral familiar. Referindo as respostas recebidas, diz: "Existe unanimidade também no que se refere aos motivos de fundo das dificuldades, quando se trata de acolher os ensinamentos da Igreja: as novas tecnologias; a influência dos meios de comunicação social; a cultura hedonista; o relativismo; o materialismo; o individualismo; a secularização crescente; o facto de prevalecerem concepções que conduziram a uma excessiva liberalização dos costumes em sentido egoísta; a fragilidade das relações interpessoais; uma cultura que rejeita decisões definitivas, condicionada pela precariedade, a provisoriedade, própria de uma "sociedade líquida", do "usar e deitar fora", do "tudo e imediatamente"; valores sustentados pela denominada "cultura do descarte" e do "provisório", como recorda frequentemente o Papa Francisco".

E lá está a constatação: apesar da crise, há testemunhos significativos nos quais "se manifesta claramente, sobretudo nas novas gerações, um renovado desejo de família". Voltarei ao tema e suas dificuldades no próximo sábado.

1 comentário:

Euro2cent disse...

> Quem porá em dúvida o valor essencial da família

Thomas More, Utopia, os falanstérios.

Provávelmente inspirado nos costumes de Esparta, que lhes deram para uns seis séculos de "top dog" no mundo grego.

De nada.

(Quando se fazem estas perguntas retóricas, não se devem tomar os leitores por parvos, mesmo que estes estejam inclinados a concordar com a tese proposta.)

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