terça-feira, 29 de novembro de 2011

Cardeal Ravasi: "O problema é a distribuição do mal"


Há dias, Anselmo Borges dizia aqui que “a nossa sociedade, afundada no ter, no poder, no cálculo, na eficácia, perante a morte, não sabe o que fazer”. “Uma sociedade poderosíssima nos meios, mas sem verdade e finalidades humanas, faz dela tabu: disso não se fala. Mas, se o pensamento sadio da morte reentrasse, faríamos a tempo o que temos a fazer e saberíamos finalmente distinguir entre o que realmente vale e as ilusões do que não vale e que é causa última da nossa crise”, acrescentou o padre e professor da Universidade de Coimbra.

A entrevista que Andrea Tornielli (“La Stampa”) fez ao cardeal Gianfranco Ravasi, no contexto do congresso da Associação de Médicos Católicos Italianos (existe associação similiar em Portugal? Não parece), ajuda a reflectir sobre estes dois temas. "Oculta-se a morte de todos os modos, ou talvez busca-se a possibilidade de viver até 120 ou 130 anos, continuando a afastar o encontro. Ao contrário, devemos ter a coragem de olhar para a doença e a morte de frente como componentes da existência". Copiei a entrevista daqui.
Como o senhor responde à questão sobre o porquê da doença?
A escritora norte-americana Susan Sontag, em 1978, contou a sua experiência de sofrer de câncer em um livro intitulado "A doença como metáfora". Definição interessante: a doença nunca é apenas uma questão biológica. Quando estamos doentes, precisamos ser confortados, olhamos para a vida de um modo diferente, as prioridades mudam e, se a doença se agrava, muda a escala dos nossos valores. E mesmo quem não crê pode chegar a perguntar a Deus o porquê do que lhe acontece. No entanto, a primeira resposta é simples, lógica e racional. 
Qual é a "racionalidade" inscrita na doença?
A dor é um componente da finitude das criaturas. Um dado que, na nossa sociedade orgulhosa e tecnológica, que alguém definiu de "pós-mortal", não se quer aceitar. Oculta-se a morte de todos os modos, ou talvez busca-se a possibilidade de viver até 120 ou 130 anos, continuando a afastar o encontro. Ao contrário, devemos ter a coragem de olhar para a doença e a morte de frente como componentes da existência. 
Uma capacidade que parece se perder no Ocidente, mas que ainda está presente em outras culturas...
É verdade. Quando eu estava no Iraque para fazer estudos arqueológicos, um dia, um dos meus colaboradores locais me convidou para a sua casa, para que eu pudesse ver seu pai que estava morrendo. Eu fui e vi aquele velho deitado no meio do centro da única grande sala da casa, com as mulheres que cozinhavam de um lado e as crianças que brincavam do outro e, de vez em quando, se aproximavam do avô para tocar em sua mão. 
A consciência da finitude não basta para explicar a dor inocente, a doença das crianças, o destino que persegue aqueles que já sofreram.
O problema é a distribuição do mal. Continua sendo dramática a página do "A peste", de Albert Camus, onde, perante a morte de uma criança, afirma-se: Eu não posso acreditar em um Deus que permite isso. É o excesso do mal. Aqui, começa a fronteira em que as religiões se atestam com as suas respostas, que não esgotam o mistério. No Livro de Jó, no auge do desespero humano, Deus fala e varre todas as explicações e as tentativas de racionalizar. A solução só pode ser metarracional, global e transcendente, e se encontra no encontro com Deus. 
E a resposta do cardeal Ravasi?
É a cristã, totalmente diferente das outras religiões. Porque, no cristianismo, é Deus mesmo, em Cristo, que não só se curva sobre nós para nos explicar o significado do sofrimento, não só em alguns casos cura graças à sua onipotência com os milagres, mas também entra na nossa humanidade e prova toda a dor do homem. A dor física, moral, o medo, o silêncio do Pai. E, no fim, até mesmo a morte, que é a carteira de identidade do homem, não de Deus. Ele se torna um cadáver, sem nunca deixar de ser Deus, sofre todo o sofrimento humano e nele depõe um gérmen de transfiguração, que é a ressurreição, fecundando a nossa natureza mortal. 
Porém, isso não anula a dor nem a pergunta. Mesmo para aqueles que creem.
Jesus Cristo, o Filho de Deus, não veio para apagar a dor, tanto é que ele a viveu. Mas ele a assumiu sobre si e a transfigurou com o gérmen do infinito, que é um prelúdio da eternidade para nós. O cristianismo é uma religião fortemente carnal e próxima do drama de quem sofre – ao contrário de muitas outras religiões –, porque, para os cristãos, Deus se tornou um homem e morreu na cruz. Os cristãos, como atesta o nascimento dos hospitais, sempre teve essa atenção pelos enfermos, porque acreditam em um Deus que foi sofredor, que conheceu a morte e ressuscitou. 
O seu dicastério organizou recentemente um congresso dedicado às células-tronco adultas, via alternativa ao uso das células embrionárias. Igreja e ciência podem se reencontrar?
A utilização das células embrionárias está obtendo resultados mínimos comparados aos obtidos com as células-tronco adultas: cancela-se assim o lugar comum que nos atribui a responsabilidade de não querer aliviar os sofrimentos de tantos doentes. Justamente as células-tronco adultas, que não têm nenhuma contraindicação de tipo ético, estão trazendo resultados encorajados no campo oncológico e contra o Parkinson e o Alzheimer.

2 comentários:

Anónimo disse...

Leio com frequência o que aqui escreve e que muito aprecio. Permito-me responder à pergunta que coloca, transcrevendo o que se lê na página da AMCP:


A Associação dos Médicos Católicos Portugueses (AMCP) é um organismo privado sem fins lucrativos que tem por finalidade congregar os Profissionais da Medicina que se afirmam católicos e desejam exercer a sua profissão à luz dos princípios evangélicos.

Tem por finalidade a definição e a difusão de princípios orientadores das actividades ligadas à saúde à luz da fé cristã, partindo da análise dos problemas que derivam do exercício concreto da Medicina nos quais incide a reflexão e se fundamenta a experiência dos seus associados.

A AMCP foi fundada em 1915. Tem âmbito nacional e encontra-se organizada regionalmente em núcleos correspondentes às dioceses. A presente página pretende divulgar as actividades do Núcleo Diocesano do Porto.

Embora não seja médica, sei que o núcleo do norte funciona no edifício da Fundação Voz Portucalense.

Cumprimentos. ASP

Jorge Pires Ferreira disse...

Cara ASP, obrigado pela informação. Hei-de escrever uma nota usando os dados que me dá.

Só há doze bispos no mundo. São todos homens e judeus

No início de novembro este meu texto foi publicado na Ecclesia. Do meu ponto de vista, esta é a questão mais importante que a Igreja tem de ...